Emannuel Bento
30/1/2024
Uma disputa antiga tem instigado discussões na esfera digital às vésperas da folia de 2024, curiosamente ancorada no refrão de um lançamento de Ludmilla, que é carioca. “Vem ser meu Carnaval do Recife”, canta ela, no pagode “Maliciosa”.
Existem alguns padrões nos argumentos. Os recifenses apontam para o caráter democrático da sua festa, que não tem “cordões” ou “abadás”, sendo intrinsecamente popular. Já os soteropolitanos evidenciam o apelo midiático, turístico e econômico do carnaval, que conta com astros nacionais da música, principalmente do axé.
Tem muito mais papo nesse cabo de guerra, que esconde um um fato que precisa ser melhor trabalhado e difundido: os carnavais do Recife e de Salvador se complementam enquanto grandes festas populares do Nordeste brasileiro, em suas gêneses e desenvolvimento.
Até a metade do século 20, os grandes carnavais do Brasil eram o do Rio de Janeiro, com o samba, e do Recife, com o frevo. A festa soteropolitana era uma mistura de marchinhas cariocas, samba e orquestras de frevo - como ocorria em outras capitais nordestinas.
Em 1951, uma grande agremiação recifense, o Clube Misto Carnavalesco Vassourinhas, aportou em Salvador para uma apresentação de frevo de rua na Praça da Sé, no Centro.
Essa apresentação entrou para a história por ter inspirado dois jovens músicos baianos a criarem um substituto funcional para as orquestras: um instrumento de corda amplificado que emitia sons distorcidos, o pau elétrico - mais tarde chamado de guitarra baiana.
Dodô e Osmar saíram, naquele mesmo ano, com uma outra novidade: um trio elétrico carnavalesco. Nesta primeira fase dos trios, tocava-se com uma forte influência do frevo e das marchinhas, adaptados a essa instrumentação. Ao longo do anos, foram somando-se novos timbres, efeitos, pedais e sintetizadores, sobretudo com a chegada de Armandinho Macêdo.
Até meados dos anos 1980, era esse frevo elétrico que dava o tom do carnaval de Salvador, que tem raízes (também) pernambucanas. A festa só passaria a atrair a atenção de turistas com sucessos como “Atrás do Trio Elétrico” (1969), um frevo de Caetano Veloso que explicava o modelo da festa. Moraes Moreira, também baiano, ajudou a difundir o frevo no cenário nacional. Ele compôs frevos gravados por Gal Gosta, por exemplo, com “Bloco do Prazer” (1982).
Foi Moreira quem explicou de forma didática essa mutação. "E o frevo que é pernambucano / Sofreu ao chegar na Bahia / Um toque, um sotaque baiano / Pintou uma nova energia", canta, em "Vassourinha Elétrica" (1980).
Enquanto a discussão “do melhor carnaval” ocorre,, na Frevo Orquestra do Mundo , Pupillo e Davi Moraes lançaram o disco “Moraes É Frevo”, que ressalta justamente essa simbiose entre Recife e Salvador, com músicas de Moraes Moreira executadas pela escola pernambucana de sopros. Pupilo, pernambucano. Moraes, baiano. Tá tudo bem, gente.
O impacto de mercado que a axé music (que tem o frevo elétrico entre os ritmos de sua gênese) ganhou ao longo dos anos 1990 fez com que muitas pessoas não associassem essa ligação do frevo com Salvador. A imagem que ficou foi de divas como Daniela Mercury, Ivete Sangalo e Claudia Leitte ou showmans como Bell Marques e Durval Lellys arrastando multidões no circuito Barra-Ondina.
Essa indústria passou a exercer um grande poder no mercado musical baiano, dominando diversas esferas de sua cadeia. O próprio Moraes Moreira, inclusive, costumava reclamar das poucas oportunidades na festa. Não só ele, como Armandinho, Dodô & Osmar e Chico Evangelista.
Hoje, esses carnavais operam em lógicas diferentes, marcadas pelo contraste entre os blocos de rua do Recife, que hoje também tem uma festa multicultural bastante focada em palcos e polos descentralizados, e os trios elétricos de Salvador - sejam nos cordões ou nas pipocas.
A discussão também poderia apontar para alguns desafios de ambas as festas, como a necessidade da capital soteropolitana preservar esse legado do frevo elétrico e de se atentar aos limites da imposição do mercado na folia.
Já o Carnaval do Recife, que tem blocos mais tradicionais e hinos do frevo que datam de quase 80 anos, teria como aprender com o de Salvador no sentido de criar novos sucessos, dando frescor à festa sem dar costas às suas raízes - e atraindo novos interessados por esse frescor.
Na capital soteropolitana, por exemplo, uma proeminente cena de pagodão que envolve Léo Santana, e muito outros; e o movimento cultural criado por Baianasystem são exemplos dessa renovação - Baiana, inclusive, tem muitas identidades em comum com a pernambucana Nação Zumbi.
A gente não pode esquecer do maracatu, manifestação ancestral negra, que data de meados do século 18, espalha-se por diversos pontos do Recife e de Olinda.
Já em Salvador, os blocos afros resgataram o orgulho da negritude nos anos 1970, sendo o Olodum o exemplo mais midiático, ao lado do Ilê Aiyê, Malê Debalê, Cortejo Afro, entre outros. Os afoxés existem tanto na Bahia, como em Pernambuco.
É importante ressaltar que, em ambas as cidades, esses numerosos grupos da cultura popular negra ainda precisam lutar constantemente por cachês dignos, fazendo um esforço para desfilarem todos os anos, inclusive fora do período carnavalesco.
A Prefeitura de Salvador, inclusive, deu um importante passo no reconhecimento dos blocos afros com o tema “Capital Afro” para o Carnaval de 2024 - o poder municipal tem até uma “secretaria da reparação” atenta a esses paradigmas históricos.
Já a Prefeitura do Recife tem feito algumas movimentações para evidenciar essa afinidade entre as duas capitais. Na abertura do Carnaval de 2024, no Marco Zero, o Tumaraca, encontro de maracatus de Pernambuco, vai tocar com o Olodum no espetáculo "Tambores pela Paz", além de Gilberto Gil como atração no dia
Então, vamos parar de arengar? Recife e Salvador têm carnavais incríveis, únicos, complementares, e principalmente, incomparáveis. Há espaço para tudo na criação do novo imaginário nordestino, exceto para brigas que nos afastem. O momento é outro: o de se juntar.
Como manda "Cometa Mambembe" (Carlos Putta/Edmundo Carôso): "Tenha fé no azul que tá no frevo / Que azul é a cor da alegria / No cavalo mambembe sem relevo / No galope de Olinda pra Bahia".